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AS PLANTAS DE FRESTA

As plantas de fresta estão por aí
Para enxergá-las basta ter olhos
Metáfora da resistência
Resistência como natureza íntima
Resistência que não quer nada além de ser
Existe uma fresta? Logo existe possibilidade
fresta e vegetal formando uma coisa só
Quanto menor o espaço, melhor
Umas desenvolvem raízes profundas
Outras mais superficiais e esparramadas
Nutrientes? Só o essencial
Muitas tem poderes medicinais
Outras são alimentos com alto teor nutricional
Para alguns são apenas ervas daninhas
Mesmo assim elas continuam lá
Rompendo asfaltos e concretos
Povoando calçadas, viadutos, muros e ruas
Alimentando, curando, ornando, florescendo
Contrapondo à metrópole endurecida
Silenciosa alegoria 
daqueles que não se enquadram
Por uma questão de natureza.

O COMUM

Etimologia: Do latim COMMUNIS, Ato de repartir deveres ou conjunto. Relacionado à MUNUS, tarefa, dever, ofício - COM+MUNUS = Exercer função com, Cogerir. (http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/comum/)

Significado: adj. Diz-se daquilo que pertence a todos ou do que cada um pode fazer parte ou participar. Realizado em conjunto; Geral; particular a um grande número de pessoas. Simples; caracterizado pela simplicidade. Habitual; muito banal ou frequente. [Pejorativo] Insignificante; sem valor. [Gramática] Diz-se do substantivo que nomeia ou se aplica à classe da qual fazem parte os seres, as coisas. s.m. O que se apresenta em maior número; a maioria. Corriqueiro; o que não é anormal. Em comum. De modo coletivo. Sinônimos: Banal, Generalidade, Simples, Vulgar, Trivial, Ordinário, Corriqueiro, Habitual; (http://www.dicio.com.br/comum/)

I – LATÊNCIA

“Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”                                                   Manuel de Barros

Como na semente, uma latência habita o comum.

O cotidiano está permeado pelo comum. O que um dia foi novo, desconhecido, incomum, pela contínua interação e uso, adquire o caráter de comum, corriqueiro, simples, normal, banal. Significado e significante tornaram-se muito bem delimitados na estrutura cognitiva. Pode-se quase dizer que foi apreendido, prendido, aprisionado numa camada de significação e sentido pela força do cotidiano. E nesse processo muitas dimensões foram sendo deixadas de lado em prol de uma funcionalidade cada vez mais pragmática. De certa forma não desperta tanto o interesse, não encanta, não comove, não ativa a imaginação, não atrai, não fascina. Predomínio do cinza.

Ingenuidade seria acreditar que tudo isso se move por forças naturais e espontâneas. Na realidade faz parte de uma ativa engenharia de construção subjetiva da sociedade. A mola mestra de um processo essencial do sistema capitalista: a produção da novidade incessante. Eis o coração do consumismo. Porém é um novo de vida curta, pois seu uso massificado, estimulado pela publicidade, em pouco tempo o transmutará em comum e descartável. O desejo do novo como condição do existir. O novo como fetiche e mercadoria. O novo que só provisoriamente preenche uma falta permanente. Moda. E nesse processo perverso de colonização para o consumo, os sujeitos vão trocando sua potência de ser mais pelo ter mais.

Outro olhar se faz necessário. Olhar que não é somente visão. Olhar de corpo inteiro atento, curioso, contemplativo, demorado. Que se espanta, que descobre o não saber como potência e que novamente é capaz de ter o fascínio como aliado. Uma ressensibilização, um reativamento perceptivo e sensorial. Retirar o véu do cotidiano e descobrir um novo ocultado no banal chamado de comum. Colorir o cotidiano.

Na natureza a latência pode ser comparada a um estado de sono. Funciona como uma espécie de gatilho, que para ser disparado exige um processo de interação. Uma inteligência que no momento mais propício emerge sua potência de vida. Comumente a germinação é ativada quando a semente entra em contato com a ÁGUA. Ela atua como uma força capaz de despertar a vida adormecida na semente.

A água é uma substância encontrada em grande quantidade no meio ambiente e no corpo dos seres vivos, sendo considerada, portanto, a substância mais comum do planeta. 

Entre suas principais características destacam-se: seu grande poder dissolvente, sua capacidade de reter calor, sua natureza constante com forma variável, grande capacidade de fluir, se amoldar, limpar e interagir e estar presente na maioria dos organismos vivos.

Simbolicamente ela representa a força fraca que a tudo se amolda, que pacientemente derrota o duro, que ao encontrar um obs­táculo, o desgasta, dissolve ou o leva consigo. Na impossibilidade de se­guir essas opções ela se desvia e segue o seu curso normal. Ela transmite a noção de flexibilidade e de força.

“É em função do terreno que a água determina seu curso; e é em função do “outro” que determinamos nossa vitória. Por se adaptar sempre, a água é levada a progredir. Somente nos adaptando ao “outro” poderemos triunfar. A situação do “outro” está para nós assim como o relevo esta para a água. À medida que nos tornamos adaptáveis como a água, sem forma fixa, podemos nos aproveitar da menor brecha oferecida pela situação e continuar nossa progressão. Enfim a partir do “outro” e da realidade que nos cerca é que concebemos nossa estratégia. Ela Representa a sabedoria, o ciclo, a mudança, a flexibilidade e o movimento interessante e inesgotável. Não tem ego, não age com intenção e segue seu curso de acordo com a realidade à sua volta”.

Panta rei. Tudo flui. O movimento como metáfora da eterna transmutação das coisas e da vida. A água leva, a água traz e no seu fluxo incessante nem o rio nem o homem são mais os mesmos.

Fisicamente e simbolicamente a água está carregada de potências. Potência essa capaz de transmutar o comum, ativando sua latência oculta.  70% do corpo humano é constituído de água! A inteligência da água nos habita por natureza. 

Germinar o comum como estratégia de florescimento e geração de abundância. Escrever a poesia do comum. Lapidar as joias raras ocultas pelo cotidiano bruto. Escavar coisas escondidas pelo tempo, num trabalho arqueológico. Ver muito onde aparentemente há pouco. Movimento ao invés de dureza. Flexibilidade à rigidez. Transmutar o comum como forma de encantamento do mundo. Fertilizar o delírio. Vivificar a água que somos nós mesmos!

II – COM UNIDADE

“Se não podemos ver-nos, trocar ideias, nem estar em companhia um do outro, o sentimento do amor evaporar-se-á em pouco tempo”. Epicuro

O comum em sua etimologia carrega uma dimensão política.

Aristóteles dizia que o homem é um animal político por natureza. E a política emerge a partir do momento que o impulso de koinônia (comunhão) toca o coração dos homens (humanidade).

Desde os primórdios das civilizações a humanidade se depara com uma árdua luta pela sobrevivência. Numa realidade repleta de obstáculos à sua necessidade de alimentos, abrigo e afeto, o homem rapidamente entendeu o valor de coletivizar-se. Comunizou-se como estratégia de sobrevivência. Ora na família, ora no bando, ora na tribo, ora nas cidades. A comunidade lentamente foi se afirmando como uma importante dimensão humana. E essas associações permeadas pela cultura de cada local, com suas especificidades se confrontaram com o desafio de compartilhar um mesmo território, dividir tarefas, produzir e repartir riquezas, lidar com os conflitos, se relacionar com o invisível, etc. Se por um lado comunizar trouxe muitas benesses, por outro lançou complexos desafios. E cada sociedade foi criando suas estratégias de sobrevivência em grupo.

Na contemporaneidade vivemos sob o julgo do capitalismo. Esse sistema sócio econômico, fundado na Europa a partir do século XII, foi se desenvolvendo lentamente até chegar à configuração atual, impondo-se como modelo dominante. Ele brotou das sombras humanas e por contágio se disseminou como uma epidemia. Não é preciso muito esforço para percebermos suas contradições e riscos iminentes. Ao eleger a competição, o individualismo, o consumismo, o lucro, a propriedade privada, a mercantilização e coisificação da vida e das relações e a exploração do trabalho, ele gera um cenário social,  politico, econômico e afetivo perverso e perigoso. Como pensar em coletividade se somos estimulados a competir uns com os outros permanentemente? Como aceitar uma ideologia de sociedade que coloca a natureza como uma fonte de recursos a ser explorada até a exaustão, desconsiderando que sua destruição é também a nossa? Como aceitar o individualismo, se a ideia de sociedade nasce justamente a partir da necessidade da relação e cooperação de uns com os outros? Como aceitar um modo de vida, onde a felicidade está assentada no consumismo e no desejo de fama? Como acreditar numa estrutura onde o fruto do nosso trabalho tem por objetivo a manutenção dos privilégios da classe que nos oprime? Como aceitar a ideologia da propriedade privada se ao morrermos não levaremos nada além de nossas experiências?

Essas contradições surgem a partir do momento em que a sociedade se polariza hierarquicamente em classes. Uma privilegiada, que dá as diretrizes e a outra oprimida, que as seguem. O capitalismo é nocivo á humanidade e ao planeta e os sinais disso são evidentes: doenças degenerativas, solidão, depressão, poluição, desconexão com a natureza, exploração das outras espécies, mudanças climáticas, guerras, vícios e muita violência. Algo não vai bem.

Enxergar e reconhecer o abismo para o qual essa sociedade caminha é um excelente estímulo para investigar, experimentar e contrapor outras formas de associações, práticas e pensamentos. Descobrir as fissuras na estrutura que permitam infiltrações.

Comunizar como estratégia de infiltração.

(E se ao invés de competirmos cooperarmos? E se ao invés de hierarquizarmos horizontalizarmos? Ao invés de imposições buscarmos o diálogo? E se o afeto tornar-se a moeda de troca mais valiosa? E se olharmos para a natureza não como inimiga e sim como nossa maior aliada? E se olharmos para o mundo como lugar de assombro, curiosidade e não como algo já conhecido? E se buscarmos percebermos a nossa intrínseca necessidade do outro em nosso processo de transformação e crescimento? E se a busca por novas experiências tornarem-se o motor do desejo e não simplesmente o desejo de sucesso? E se reciclarmos, reutilizarmos e ressignificarmos ao invés de buscarmos o novo que é mais do mesmo? E se ativarmos nossa generosidade e desapego em franca oposição ao desejo de propriedade? E se reativássemos nossa dimensão de coletores/produtores ao invés de nos contentarmos com o lugar de consumidores?  E se o ter valer muito menos que o Ser ? E se....)

Cultivar a capacidade de comunizar como ato de resistência, fortalecimento e contágio. Apostar naquilo que nos une e aproxima! Alimentar a chama de koinônia num momento de crise e polarização da vida social e política. Emergir a consciência do Holos, onde a parte só se compreende a partir da sua relação com o todo. 

Um sinônimo para Comunizar: Encontro! Onde EUNÓS é COMUM!

A ARTE DOS ENCONTROS E A POTÊNCIA DOS AFETOS EM VIGOTSKI E ESPINOSA1 
 
 
A potência comum é mais poderosa do que o conatus individual 
BARUCH DE ESPINOSA 
 
 
Pelo seu caráter potencialmente criativo e imaginativo, a arte, possibilita a ampliação do horizonte social – ao buscar no passado, antevê o futuro – produz utopias de um outro mundo possível . Esse é o sentido de ser considerada – potencialmente – catalizadora de processos de transformação social. 
Para Vigotski, as origens da produção da arte estão no social. De um ponto de vista antropológico, ele escreve que, no início, a arte estava ligada diretamente à atividade de sobrevivência, o trabalho humano. “[No processo histórico-cultural] a arte se separa do trabalho e começa a existir como atividade autônoma”.  
 
“[...] Nos seus níveis mais elevados a arte, pelo visto já separada do trabalho e tendo perdido a relação direta com ele, conservou as mesmas funções, uma vez que ainda deve sistematizar ou organizar o sentido social e dar solução e vazão a uma tensão angustiante.” (VIGOTSKI) 
 
Vigotski concorda com Freud a respeito da ideia de que “na arte supera-se certo aspecto do nosso psiquismo que não encontra vazão na nossa vida cotidiana”. Essa ideia em Vigotski aponta para sua noção de inconsciente, muito diferente da freudiana. Para ele, o inconsciente se assemelha a um campo de possibilidades a ser explorado, tudo aquilo que poderia vir a ser. Essa seria uma das funções da arte: alcançar o irrealizável, não como falta, mas como potência. “A arte às vezes não é uma expressão direta da vida, mas uma antítese da vida”. Para Vigotski, o inconsciente é devir. 
A arte, ao longo de sua história, torna-se um instrumento de transformação individual e social. Através da mobilização dos afetos e da expansão dos nexos entre as funções                                                           
1 Por Fabiana de Andrade Campos, com colaboração de Fernando Costa e Marleide Marques

 

 

 psicológicas: ativa e amplia a memória, o pensamento, a linguagem e desperta o inconsciente. Isso significa ampliação da consciência e do repertório de ações e comportamentos. Para Vigotski, existe uma função psicológica na arte, ela tem a potência de transformar afetos e pode atuar na resolução de conflitos internos e externos.  
Sua concepção de arte está embasada no seu caráter eminentemente social, nas suas palavras: 
 
“A arte é o social em nós, e se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isto não significa, de maneira nenhuma, que suas raízes e essências sejam individuais. [...] o social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções. [...] a refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade.” 
 
Vigotski não separa os processos emocionais do pensamento: “a separação entre a parte intelectual da nossa consciência e a sua parte afetiva e volitiva é um dos defeitos radicais de toda psicologia tradicional”. Torna-se importante considerar as relações entre as diversas modalidades de atividade da consciência, ao mesmo tempo, suas relação interfuncionais, considerando que o estudo da consciência pressupõe sua base sustentada e atravessada pelos encontros e pelos afetos.  A partir de Vigotski, podemos pensar que o desenvolvimento dos afetos acompanha a dinâmica das sociedades e dos segmentos dessas, em suas divisões de classes, com seus agrupamentos específicos – o que significa que quanto mais uma sociedade se desenvolve, no sentido do gênero humano, mais possibilidades do desenvolvimento de produção de afetos alegres; ao contrário, quanto mais uma sociedade se encontra em estado de degradação, produzido por fenômenos de miséria, exploração, violência, mais afetos tristes serão gerados e mais bloqueios poderão surgir no desenvolvimento das funções psicológicas, assim como rompimentos dos nexos que configuram essas funções (quando uma paixão triste cega a razão e passa a comandar o comportamento, agindo sem reflexão).  A arte aparece como força no movimento de expansão da consciência, desenvolvimento afetivo e intelectual, como ruptura de processos repetitivos. Nas palavras do autor: 

“A arte introduz cada vez mais a ação da paixão, rompe o equilíbrio interno, modifica a vontade em um sentido novo, formula para a mente e revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e vícios que sem ela teriam permanecido em estado indefinido e imóvel” 
 
 
Para Espinosa, a política está compreendida nas relações entre os seres e seus encontros que configuram a condição de existência sob a qual os viventes não podem escapar, pois ficariam inertes fora dela. São nesses encontros e na forma como eles nos afetam que se configura a ação ética.  O poder de transformação das relações de servidão, que está na base de uma vida éticopolítica, começa no interior dos afetos que são dois, além do desejo2, dos quais derivam os outros: a alegria e a tristeza. “Alegria é o sentimento que temos quando nossa capacidade de existir aumenta. Tristeza é definida por Espinosa como o resultado de uma afecção que diminui nossa capacidade de existir e nos tornamos passivos.” 
 
Partindo dos afetos primários, Espinosa deduz a lógica de como eles se complexificam, se compõem, divergindo ou convergindo. O filósofo espinosano, Laurent Bove, resume a lógica dos afetos assim: por associação, por transferência, por temporalização, por identificação. Os sentimentos são apresentados como compostos, uma explosão de afetos agregados que se confrontam e se contrapõem. É no corpo que as afetações ocorrem. Os sentimentos são afecções do corpo: “A mente não se conhece a si mesma, a não ser enquanto percebe as ideias dos afetos do corpo”, afirma Espinosa.   Ecléa Bosi, pesquisadora de memória social, afirma: “O que percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado? Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está mediada pela imagem, sempre presente, do meu corpo” (BOSI). Destacar o corpo é fundamental, embora esquecido pela psicologia, em prol da conscientização racionalista. E complementamos com a afirmativa segundo a qual falar de corpo é falar de emoções.                                                            
 
2Para Espinosa: “O homem é um grau de potência, uma força interior para se conservar, perseverar na própria existência, um esforço de resistência, que Espinosa chama de conatus e, também, de apetite e de desejo (cupiditas) quando o apetite é consciente. O desejo é a própria essência do homem, é a força que nos leva ao encontro com algo que sentimos que compõe com a potência de nosso corpo e alma para se conservar”. 
“Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, assim como as ideias dessas afecções”, afirma Espinosa, “o que significa que o afeto refere-se a “toda mudança, alteração ou modificação de alguma coisa, seja produzida por ela mesma, seja causada por outra coisa” (CHAUÍ). Afecções que são ao mesmo tempo do corpo e da alma. Sem o corpo, nossa mente seria uma essência não existente. Só percebemos as coisas pelas afecções do corpo. Sem o corpo é impossível pensar. 
 
A ideia da arte como potencializadora de novas formas de subjetivação significa compreender que ela abriga processos incubadores de novas produções humanas. Aquilo que a esquizoanálise trata como produção de novos modos de ser, pensar, agir e sentir. Assim como nos fala Vigotski, produz transformações nas funções psicológicas superiores (FPS), tais como a memória, a consciência, o pensamento e a linguagem, com a criação de novos nexos entre as funções, o que estendemos para novas relações e novas formas de sociabilidade - nas transformações dos modos de existência.  
 
Em um momento histórico tão decepcionante como esse, em que as mínimas garantias de direitos sociais estão cada vez mais ameaçados, diante das garras afiadas do neoliberalismo, um encontro, como o nosso, promete ser mais uma ferramenta potente do comum. A arte, dialogando com a psicologia, alimentando novos olhares, novas formas de fazer o mundo, de questionar o já estabelecido.  
 
Que este texto possa alimentar reflexões sobre a importância dos encontros e da arte para potencializar transformações sociais ainda latentes em nossos territórios nesse momento conjuntural com tantos questionamentos.  
 
Para finalizar, trago uma passagem da professora Bader Sawaia sobre Espinosa e Vigotski: 
 
As ontologias espinosana e vigotskiana nos unem inexoravelmente aos outros e ao social. A consciência/sentimento de que nossa potência de passar da passividade à atividade só é possível por meio do outro nos torna comprometidos socialmente, não por obrigação, mas como ontologia. E são 
os afetos os responsáveis pela união dos esforços (conatus), em nos fazermos um, como se fôssemos uma única mente e um único corpo. Essa união de corpos e mentes constitui um sujeito político coletivo, a "multitudo", categoria política fundamental, pois, como afirma Espinosa, o desejo de resistência nasce do sentimento de indignação. Mas resistir não é só se indignar. O direito de derrubar a tirania depende da força para fazê-lo. Essa força, em situação de desmesura do poder, depende de uma potência de agir coletiva conquistada pela união de conatus, a qual, por sua vez, é favorecida quando a lógica dos afetos permite a percepção da amizade e da generosidade como algo útil. (SAWAIA) 
 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  
 
 
BOSI, E. (2004) Memória e sociedade; lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz. 
 
BOVE, L. (2010) Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. Belo Horizonte: Autêntica. 
 
CHAUÍ, M. (1987). Sobre o medo. In A. Novaes (Org.), Os sentidos da paixão (pp. 35-75). São Paulo: Companhia das Letras. 
 
ESPINOSA, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora.    
 
SAWAIA, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade e transformação social. Psicol. Soc. [online]. 2009, vol.21, n.3, pp. 364372.  
 
VIGOTSKI, L. S. (1999). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes.   

Território e educação integral 


Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.  (Paulo Freire) 
A dimensão espacial é um dos fatores mais importantes quando pensamos numa educação que almeja a integralidade dos sujeitos envolvidos. A educação formal centraliza seu processo de formação no espaço escolar, construindo uma dicotomia instituição-realidade que cada vez mais tem se mostrado frágil e insustentável frente ao contexto contemporâneo.

 
Se quiser saber mais sobre os espaços da educação assista ao vídeo do projeto Rodas de conversas produzido pelo Teia, com Professor e escritor Miguel Arroyo: https://youtu.be/ulzUaG5Dz6E 


Num cenário em que o fluxo de informações, a presença tecnológica e a massificação intensificam-se, a hegemonia da escola como lugar central do conhecimento vem sendo questionada. Por outro lado a consolidação da democracia no Brasil e o processo de globalização das economias mundiais vêm criando uma demanda por um lado de cidadãos com maior capacidade de leitura crítica da realidade e participação nas questões coletivas e por outro de trabalhadores com maior qualificação técnica. Portanto o cenário colocado pela realidade atual vem exigindo uma mudança de paradigma nas formas de atuação e também no papel exercido pela escola.

  
Se quiser saber mais sobre a crise da educação formal no contexto contemporâneo assista aos vídeos do pesquisador espanhol Manuel Castells: 
http://teiaufmg.com.br/manuel-castells-explica-a-obsolescencia-da-educacao-contemporanea-2/ 
http://teiaufmg.com.br/manuel-castells-escola-e-internet-o-mundo-da-aprendizagem-dos-jovens/ 


Ao pensarmos numa educação que se diz integral é inevitável a ampliação dos espaços onde ela se dará. Separar o espaço escolar da realidade que a rodeia é uma contradição importante de ser superada. A escola, assim como o espaço que a rodeia, é socioculturalmente construída. E ela precisa reintegrar-se a essa realidade circundante se realmente quiser promover a integralidade dos sujeitos. Dessa forma, romper os muros concretos e subjetivos da escola aparece como urgência numa prática pedagógica que almeja a superação do modelo formal de educação. 
É nesse contexto que a realidade extramuros do território emerge com toda sua potencialidade e a investigação da própria realidade a qual os envolvidos estão enraizados e imersos socioculturalmente, abre muitas possibilidades de desenvolvimento educacional.

 
Se você quiser saber mais sobre o uso do território na educação integral acesse o Cadernos do projeto Mais educação:  
http://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2014/04/territorioseducativos.pdf 


Desde a década de 60, Paulo Freire já propunha uma pedagogia dialógica que superasse dicotomias clássicas como professor-aluno, escola-realidade, geradas a partir de um pensamento formal. O Diálogo para esse educador é enxergado como prática libertária, onde os envolvidos se colocam como seres em processo de construção, desierarquizados, passíveis de transformaram-se numa relação de troca e a partir daí agentes transformadores do mundo que vivem. Nas palavras de Paulo Freire “o diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. Nessa educação problematizadora o sujeito é colocado numa postura ativa frente à realidade, sendo estimulado a desenvolver sua consciência, tanto no que diz respeito a sua dimensão individual quanto coletiva. Ao passo que a educação bancária cultiva a repetição, a passividade e a aceitação, a problematizadora estimula os sujeitos a agirem sobre o mundo, construindo novas realidades. 


Se quiser conhecer a obra de Paulo Freire clique aqui: http://acervo.paulofreire.org/xmlui 


O território surge como uma importante categoria de investigação num processo de educação integral, pois é nele que os sujeitos vivem e constroem sua subjetividade a partir das relações que aí tecem. Para o geógrafo brasileiro Milton Santos ele “não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” 


Você pode saber mais sobre o livro de Milton Santos citado aqui: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/sugestao_leitura/sociologia/outra_globalizac ao.pdf 


Percebe-se pela fala de Santos que é na dimensão territorial que as raízes dos sujeitos se nutrirão, alimentando assim sua identidade, seu sentimento de pertença além de criar sentindo em seu estar no mundo. E a partir das relações de poder estabelecida entre os diversos atores que atuam no território ele continuamente será modificado. A subjetividade aparece como um importante elemento dentro dessa forma de pensar o território, uma vez que cada indivíduo se relacionará com ele de uma maneira bem distinta, baseada em suas experiências. Isso possibilita trabalhar o território como um símbolo, onde cada um desenvolverá percepções muito particulares e a partir de uma prática dialógica cria-se a possibilidade de expansão da percepção de todos os envolvidos no processo de ensino aprendizagem.  
O geográfo Claude Raffestin propõe que “o território será um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou “comunidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders). Assim pensado, os territórios são antes relações sociais projetadas no espaço, um campo de força onde os agentes nele atuam. 


Se quiser aprofundar a leitura sobre Claude Raffestin acesse aqui: http://www.univale.br/cursos/tipos/posgraduacao_strictu_sensu/mestrado_em_gestao_integrada_do_territ orio/_downloads/por_uma_geografia_do_poder-claude_raffestin.pdf 
 
A cidade surge assim como um espaço privilegiado para a produção do conhecimento, estando suas ruas, prédios, histórias, parques e monumentos repletos de informações disponíveis a serem lidos, problematizados, ressignificados.  

 
Para o professor espanhol jaume Bonafé “há milhares de situações construindo constantemente significados. A cidade junto aos meios de comunicação são elementos que estão nos fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, são currículo e devem ser estudados como tal.” Segundo ele, para colocar em prática essa visão, é preciso admitir que há um currículo fora da escola, que pode ser construído a partir das diferentes experiências e práticas culturais, e levando em conta as inúmeras formas de entender e vivenciar o mundo. “Se nos ensinassem a ler a rua de outra maneira, muito provavelmente, seríamos cidadãos diferentes, saberíamos valorizar as praças e as cidades a partir de um outro olhar.” 


No link abaixo você pode ler na íntegra a entrevista de Jaume bonafé: http://portal.aprendiz.uol.com.br/2014/11/12/cidade-como-curriculo-pesquisador-espanhol-desafiaescola-olhar-rua/ 


Porém Jaume argumenta que somente sair para o entorno, como forma de oxigenar o cotidiano escolar não é o caminho para uma verdadeira transformação. A seu ver é preciso ver a rua como um currículo e investigá-lo profundamente. Buscar “entender o que significam as grandes avenidas, os centros comerciais e as praças; qual o significado para as crianças ou para as pessoas mais velhas, para os homens ou mulheres, para negros e para os brancos. Ver quais significados se constrói na cidade e nos dar conta de que em uma cidade há muitas cidades, interpretadas segundo o mundo de cada um. Há milhares de situações que estão construindo constantemente significado. A cidade junto aos meios de comunicação são elementos que estão nos fazendo como sujeitos, nos moldando. Portanto, é currículo e devem ser estudados como tal.” 
Concluindo podemos elencar algumas possibilidades que o uso do território pode trazer ao processo educacional: 
- É uma excelente oportunidade dos envolvidos conhecer e reconhecer o espaço onde habitam;  
- Fortalece a construção de sentido da aprendizagem ao trazer o espaço cotidiano para as aulas;  
- Gera a oportunidade dos envolvidos desenvolver sua cidadania mais profundamente, uma vez que estarão vivenciando de perto a diversidade existente no espaço onde habitam, além da possibilidade de propor soluções para os problemas existentes;  
Valorização do conhecimento construído dentro da própria realidade a qual os envolvidos vivem, ou seja, o conhecimento popular;  
- Coloca a experiência e não o saber livresco como aspecto fundamental do processo de ensino aprendizagem;  
- Cria a possibilidade de transformação da realidade sociocultural do território habitado; 
- Fortalecimento do processo democrático do país.    
 
 

Experiências de uso do território na educação integral 


Heliópolis é a favela mais populosa de São Paulo e uma das maiores do mundo: mais de 120 mil pessoas habitam o emaranhado de suas vielas. A história dessa comunidade está repleta de episódios de luta, conflitos e esforços para escapar da exclusão social. 
Surgida no início dos anos 1970, Heliópolis vem passando por diversas etapas de amadurecimento, de mudanças. Primeiro, viveu sob a intimidação agressiva dos grileiros e as constantes lutas pela posse da terra. Em seguida, testemunhou o crescimento alarmante da violência, as guerras de traficantes e o assassinato de seus jovens. Os avanços da urbanização, porém, deram à favela o status de bairro e, hoje, a educação começa a transformar a realidade de seus moradores. Realização: Prefeitura da Cidade de São Paulo (Secretaria de Educação) / Fundação Padre Anchieta / Diretor: Andre Ferezini / Produtora: Maria Bonita Filmes 
https://vimeo.com/29900589 


Bairro educador - Descrição: Heliópolis é um bairro da Zona Sul da capital paulista que historicamente, desde a sua fundação, tem uma população muito ativa e organizada, que reivindicava melhores serviços públicos, como moradia, saúde e educação. Nos anos de 1990, a força mobilizadora dos moradores, em diálogo com uma nova gestão escolar na EMEF Campos Salles, uma das principais escolas da região, foi trazendo ao bairro um novo olhar sobre a forma de se pensar e fazer educação. http://educacaointegral.org.br/experiencias/comunidade-se-transforma-em-bairroeducador/ 
Territórios educativos na cidade - Sem muros, uma escola se abre para a comunidade. Em simbiose com os demais equipamentos da região, com a rede de proteção à infância, com coletivos artísticos e organizações sociais, os habitantes desse local se articulam para garantir que a rua seja um espaço de aprendizado para todas as idades. A ideia de que só “os especialistas” detêm o conhecimento cai por terra e as pessoas que ali vivem adicionam suas experiências e saberes na construção de um projeto de desenvolvimento local que começa, mas não termina, no campo da educação. Para além do “Se essa rua fosse minha”, uma proposta: E se esse bairro fosse de todos? 
http://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/04/06/territorios-educativos-como-aprender-nacidade/ 
Mapeamentos de territórios - “A cartografia vem no sentido de observar a realidade, ou seja, não só se deslocar, mas observar as interações mantidas, as relações de poder, interpessoais, geracionais, a forma como os espaços são utilizados, quais deles são negados”. É assim que o professor Juarez Melgaço Valadares, docente da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), define a atividade de cartografar, ou mapear espaços. 
http://teiaufmg.com.br/juarez-melgaco-esforcos-para-mapear-territorios-apoiam-acriacao-de-arranjos-de-educacao-integral/ 

 

 
A experiência da Praia da Estação - A Praia da Estação surgiu em 2010 como uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação.  É um movimento horizontal, sem lideranças, auto-organizado, sem porta-voz. É constituída por cada um dos banhistas que se juntam a ela. Nela cabem de outros movimentos políticos a blocos de carnaval. Lá encontram-se guarda-sol, cadeiras de praia, caixas de isopor e até farofa. O banho é garantido pelas fontes da praça e por um caminhão pipa contratado com a grana de uma vaquinha que rola na hora, entre os próprios banhistas. https://www.youtube.com/watch?v=5354OiTR07E 
Escola e espaço urbano Porto Alegre - Em 1999, professores da rede municipal da capital gaúcha (RS) começaram a adotar em suas aulas o Atlas Ambiental de Porto Alegre, para assim iniciar junto às turmas o trabalho de educação com foco no meio ambiente. Diferente de outras metodologias que envolviam a questão, o material trazia a possibilidade de se pensar o conteúdo junto à comunidade. Os espaços urbanos podiam ser avaliados a partir de suas características constituintes – naturais, sociais, gestão – e também serem indutores de análises geográficas, por exemplo, aproximando as aprendizagens curriculares do território. http://portal.aprendiz.uol.com.br/2014/06/10/laboratorio-em-porto-alegre-estudaambiente-urbano-e-aproxima-escola-da-comunidade/ 


Cidade educadora - O número 1.012 da Rua da Consolação não abriga loja de lustres ou concessionária de veículos. Desde o dia 22 de março de 1953, funciona ali a Escola Municipal de Ensino Infantil Gabriel Prestes, que não passou incólume pelas transformações da cidade ao seu redor e, após mais de seis décadas de existência, tornou-se um espaço de aprendizagem cuja finalidade é ampliar os diálogos no território, realizando percursos com as crianças e analisando seus olhares sobre a cidade educadora. http://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/03/13/escola-em-sao-paulo-querdevolver-a-cidade-para-as-criancas/ 


Curta “A rua é pública” - Eles tinham a bola, o time e nenhum lugar pra jogar. Sem campo, quadra ou rua, algumas crianças do assentamento Eliana Silva não acham que disputa de pênaltis seja uma grande aventura, mas isso está prestes a mudar. ficção, 9 min, 2013, full HD, MG, Brasil Roteiro e direção: Anderson Lima - Produção: Anderson Lima & Cacau Amora Trilha Sonora: Eduardo Marson & Larissa Baq https://www.youtube.com/watch?v=TJw55sa7wWM 


O artista Artur Barrio e suas trouxas ensanguentadas, lançadas no rio Arrudas em 1970 dentro do evento “Do corpo á Terra”, ocorrido em Belo Horizonte. Ao usar o espaço da cidade como parte viva da obra de arte o artista desloca e amplia o sentido do que é arte e questiona a realidade social do país no auge da ditadura militar:  
http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com.br/2008/10/situao-tt-1_22.html 
https://cartografiasentimental.wordpress.com/2011/01/18/o-significado-politico-nastrouxas-ensanguentadas-de-barrio/ 

Eustáquio Neves: fotógrafo negro num país de racistas

“não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária” Vladmir Maiakovski

 

O Brasil, em sua formação cultural, recebeu maciça contribuição africana através da vinda de negros escravizados. Essa força de trabalho, em seu processo de diáspora forçada, trouxe consigo todo um universo cultural que marcará profundamente a formação do país. Apesar de sua contribuição na culinária, religião, hábitos, agricultura, mineração, entre outros, foram alvos de um perverso e permanente processo de opressão e apagamento histórico-cultural. Apesar disso, a cultura trazida da África resistiu e continua resistindo. Essa resistência cultural é a própria resistência do povo negro.

O racismo estrutural, presente no Brasil, dificulta a inserção e ascensão social de negros e afrodescendentes a partir de práticas preconceituosas e discriminatórias. Ele se baseia numa ideia preconcebida e socialmente construída da superioridade dos brancos. Tem por objetivos óbvios manter um sistema de hierarquias, exploração, opressão e ocultamento de relações perversas. Em nossa sociedade, as narrativas racistas foram normalizadas favorecendo assim as desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas.

Num contexto como este, salta aos olhos o reconhecimento nacional e internacional de um artista negro: Eustáquio Neves.

Eustáquio Neves nasceu em Juatuba, Minas Gerais, em 1955. Técnico em química e artista visual autodidata trabalhou, inicialmente, como fotógrafo autônomo em campanhas publicitárias e projetos de documentação visual. A partir dos anos 90 sua produção fotográfica ganha um caráter mais autoral. Participou de importantes exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais e suas imagens passaram a fazer parte de importantes publicações. Atualmente, vive em Diamantina, Minas Gerais, onde desenvolve projetos de fotografia e audiovisual. Seus trabalhos investigam temáticas relativas à identidade e a memória da cultura afrodescendente com forte teor crítico.

Sua produção atual é caracterizada por uma intensa pós produção, com manipulação de negativos e cópias. Segundo o próprio artista suas principais referências são as artes narrativas, principalmente o cinema e a literatura. Entre seus trabalhos mais prestigiados podemos destacar: Caos urbano (1992), Arturos (1993-1997), Futebol (199-1999), Objetificação do corpo (1999-2000), “Máscara de Punição” (2002-2003), Valongo Cartas ao Mar (2015-2016)

Sua condição de artista negro, numa sociedade marcada pela escravidão e racismo, inevitavelmente conduziu-o a pensar sua identidade neste contexto. E isso aparecerá de forma marcante nas suas séries que investigarão a condição do negro na sociedade brasileiro. Um artista é um ser social inserido numa teia de relações, onde a criação artística ocupa o lugar de produção do questionamento, de sínteses, de proposições, de fraturamentos, do exercício do pensamento crítico, da invenção, dentre tantas outras coisas. Portanto, o artista em criação é um ser sócio histórico em permanente diálogo com seu contexto. E ao pensar em sua identidade ele refletirá sobre os processos sócio históricos e afetivos que constituirão sua subjetividade.

Cecilia Sales resume de forma precisa essa questão:

“O artista em criação é um sujeito histórico, culturalmente sobredeterminado, inserido em uma rede de relações. Ele interage com seu entorno, alimentando-se e trocando informações; saindo, por vezes, em busca de diálogo com outras culturas. Os processos de criação são, portanto, partes dessa efervescente atividade dialógica, que atuam nas brechas ou nas tentativas de expressão de desvios proporcionados e, ao mesmo tempo, responsáveis por esse clima em ebulição. A obra, um sistema aberto em construção, age como detonadora de uma multiplicidade de conexões”. (SALLES, Cecilia, 2006, p.145)

 

Na sociedade brasileira o negro ao longo da história veio sendo retratado como o exótico, o outro que provoca o incômodo, os marginalizados, os condenados que impedem a inserção do país no rol das nações plenamente desenvolvidas, uma mancha que deveria ser removida do tecido social. Prova disso são as incontáveis fotografias realizadas no século 19, tanto por fotógrafos brasileiros quanto estrangeiros, onde o negro é alvo do olhar colonizador e racista, retratado normalmente cabisbaixo ou em situações estereotipadas. Nelas muitas vezes o negro é vestido em roupas aristocráticas dos brancos numa tentativa de “civiliza-los” ao gosto burguês branco. Em outros momentos históricos são retratados como exóticos praticantes de cultos do mal, como na série Candomblé de José de Medeiros publicadas de forma sensacionalista na revista “O Cruzeiro”. Também estampam permanentemente as capas dos jornais sensacionalistas normalmente associados ao crime. A objetificação do corpo do negro também será uma constante, principalmente das mulheres, vistas como objeto sexual. O poeta Gregório de Matos exerceu essa objetificação do corpo das mulheres negras de forma constante em suas poesias no passado. Na tv, a garota globeleza com seu corpo escultural negro é devorado por milhares de olhos vorazes de telespectadores normalmente racistas.

 

Eustáquio Neves manipulará suas imagens buscando construir uma nova realidade visual. Em seu trabalho ele abandonará a ideia do momento decisivo Bressoniano. Um clique preciso que capture toda uma complexidade que permeia seu entorno não é o suficiente para ele concretizar sua poética. A fotografia pura e direta é deixada de lado em prol da construção de uma nova outra, onde clicar é só uma etapa do processo, abrindo espaço para a criação de novos imaginários e ficções. Da captura do real pelo simples clique fotográfico ele passa à condição de editor, alquimista e criador de novos mundos. Neo pictorialista? Não! Em seu trabalho a fotografia não sua luta contra sua natureza, almejando aceitação como arte ou alienando a realidade num erotismo romântico e bucólico ou numa encenação artificial. Ela na verdade busca se expandir como linguagem ampliando suas possibilidades formais e por consequência suas potencialidades expressivas. A partir dessa expansão formal ele relê criticamente sua história pessoal e também dos afrodescendentes brasileiros. Constrói um discurso crítico, onde vai acumulando camadas de significados, borrando e fraturando o real instituído, produzindo um reflexão visual que aponta para uma impossibilidade de reconciliação com o passado escravagista brasileiro, a persistência desse passado no presente e a necessidade de rompimento com o etos colonialista. Com sua técnica Neves vai construindo um novo painel, trazendo uma nova representação e apresentação dos negros no Brasil. Assim, ele combate criticamente as narrativas hegemônicas, eurocêntricas, onde o negro sempre foi colocado como um fardo social ou o exótico.

 

A desconstrução do referencial em sua obra de certa forma aparece como elemento central. Se o referencial que norteia a visão de uma sociedade é perverso ele deve ser combatido e desconstruído. O ofuscamento e nublamento do real em sua obra é uma forma de embate. Escurecer ao invés de transparecer. A transparência aqui, vista como ferramenta de fortalecimento de um real perverso. Obscurecer como estratégia de fraturamento do real, instauração de incertezas, questionamento.

 

Eustáquio Neves em algumas entrevistas assume que a ideia ocupa uma centralidade em seu processo criativo. Assim, o conceito antecede o clique. O ato fotográfico, portanto, não se resume ao clique. Ele envolve a reflexão, o clique, a edição, a experimentação e o processo expositivo. Dessa forma, seu trabalho também ataca uma centralidade capitalista que é a fragmentação do trabalho e consequentemente a alienação daquele que o executa. O trabalhador que pensa seu trabalho como totalidade potencialmente se torna um construtor. Walter Benjamim já profetizava isso em sua pequena história da fotografia, que essa figura seria central numa fotografia que almejasse se colocar entre a estética e a política, tendo o conhecimento como objetivo principal e não a produção de mercadorias para o deus mercado.

A palavra resistência se insere em sua produção. Ela se manifestará na sua maneira de enquadrar o real, na forma em que pensa a luz, nos seus processos de fricção, remoção e adição de elementos na construção da imagem, nos temas que elege. Com isso seu trabalho vai ganhando novas texturas, luminosidades, composições, propondo questionamentos, fraturando o instituído, criando fendas de percepção que abrem espaço para a criação de outras formas de subjetividade. O autoritarismo e o racismo brasileiro possuem sua estética e combatê-la é uma urgência.

 

Neves também busca explorar mesclando temporalidades e espacialidades distintas numa mesma imagem promovendo. Esses diálogos e contrapontos lentamente solapam leituras apressadas e convidam à uma contemplação mais demorada e atenta. Dessa forma, ele cria um jogo em que o fruidor é estimulado ludicamente a reconstruir sua percepção do real. Suas fotografias funcionam como mediadoras entre aqueles que a fruem e a realidade. O artista ao promover suas experimentações na construção das imagens possibilita a criação de pontes subjetivas que ampliam a capacidade de ler o tempo presente.

 

Essa resistência, onde o estético e político estão amalgamados, busca escapar dos regimes escópicos instituídos e que a todo momento tenta capturar e enquadrar quem resiste. Essa captura que atende ao que está instituído (branquitude, valores burgueses, machismo, racismo entre outros) possuem múltiplos tentáculos e para escapar o artista precisa metamorfosear-se constantemente e não se ater a fórmulas consagradas bem aceitas. E aí reside o risco para Eustáquio Neves. Nesse momento ele se tornou aceito, reconhecido e inclusive premiado. Numa colônia marcada pela escravidão, racismo e dependência cultural e tecnológica da metrópole, um artista negro deve desconfiar sempre. A desconfiança subversiva e não a paranóica ressalto. Aquela que nos faz ver as frestas por onde vamos fazer o próximo ataque e sair em retirada, semelhante á estratégia Vietcong com os norte americanos na guerra do Vietnã. Numa guerra de guerrilhas, com forte assimetria de forças, onde a balança tende a pesar sempre para o mesmo lado, o guerrilheiro deve estar com atenção redobrada, atento e com a arma sempre engatilhada. Principalmente se elx for negrx e estiver num país denominado Brasil. É preciso estar atentx e forte!

 

Bibliografia

Benjamim, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura; trad.: Paulo Rouanet. 7 ed., SP: Ed. Brasiliense, 1994. Págs. 91-107.

Martinelli, Paula. Eustáquio Neves: Sujeito Fotográfico e processos de criação e o self em rede. Periódicos ufes. PUC-SP. 2018. Págs. 1-7.

Salles Cecilia A. Redes de criação: construção e obra de arte. Vinhedo. Ed. Horizonte. 2006

Sousa, Genesco Alves de, Freitas, Ricardo Oliveira de. Além da caixa preta: a identidade afro-brasileira na fotografia de Eustáquio Neves. Antares Letras e Humanidades. Maio de 2013. Pags 1 a 18

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